segunda-feira, 11 de março de 2013

Sagrado


Pedro era um padre sem fé há muito tempo. Não que ele não rezasse ou se emocionasse com a obra de Deus vez em quando, mas ele não acreditava mais que o Senhor se importasse com Sua criação. Convenhamos, era um fiasco. Ainda no Paraíso o homem era desobediente. Um dilúvio não resolvera o problema do pecado. Seu filho veio interceder por nós, mas não foi bem aceito e terminou morto. Sua morte ajudou a propagar a Palavra, mas ainda assim o mundo é torpe e somos cada vez melhores em destruir o mundo que nos foi confiado, que deveria ser a herança dos justos. Deve ser por isso que Ele mandou os mortos se levantarem.

Estava escrito há muito tempo que haveria um fim e que os mortos andariam mais uma vez no Dia do Julgamento, mas esqueceram de contar que eles se alimentariam dos vivos. Ainda hoje, passadas duas semanas do início do Fim dos Dias, Pedro tem ânsia de vômito ao lembrar de um coroinha tendo a barriga aberta por diversas mãos enegrecidas pela podridão para que pudessem alcançar suas tripas, mastigadas com indiferença pelos mortos. Andrei era um garotinho que estava sempre feliz, que dividia tudo com todos e que sempre falava em ajudar a família quando crescesse. Ele gritou pelo padre o tempo todo.

Quando os fiéis vieram bater à sua porta no meio da madrugada ele não quis abrir. Para ele ser padre era um emprego daqueles sem glamour como outro qualquer. Acabado o expediente, não abriria as portas para ninguém. Percebendo que mais e mais gente chegava às portas da igreja foi ver do que se tratava de uma discreta janela, acima de tudo, com cuidado para não ser visto. Não queria ser incomodado e sair da cama já era muito chato. Foi aí que viu o povo lá embaixo sendo comido. Teve certeza então que só abriria as portas quando tudo estivesse acabado. Apenas Andrei percebeu o padre e morreu gritando por ele, com os olhos arregalados fixos nos seus.

Tudo era muito mais silencioso agora e Pedro duvidava que alguém viesse ajudar, pois viu a Ira de Deus em toda a sua glória. Muito poderiam dizer que se tratava de obra de Satanás, mas o Diabo não podia tanto. Destruição em larga escala assim, só Deus. Imaginava como seria julgado quando sua vez chegasse, o que tentaria dizer em sua defesa. Era um ser humano falho, eles já estavam mortos quando chegou à janela, se cagara automaticamente quando finalmente entendeu o que eram os agressores... Desculpas não faltavam, mas seria poupado do Inferno?

Sim porque se os mortos podiam andar e se alimentar dos vivos havia um Céu e um Inferno e ninguém podia negar.

Certo?

Augusto andava pela terra desolada sem ambições maiores que encontrar um lugar para dormir e algo para comer. O mundo acabou, mas isso já estava para acontecer e ele acabou sobrevivendo. Não sabia quem tinha mais sorte: os que se foram antes de tudo ir pro caralho ou os que morreram quando todo mundo se fodeu. Só sabia que ele e o resto dos sobreviventes tinham azar de ter sobrevivido. Não se mataria porque não era tão fraco. Além disso, havia sempre a chance dele encontrar um abrigo definitivo, com um suprimento de comida próximo, ou dele sobreviver até que os mortos finalmente estivessem podres demais para fazer mal à humanidade.

Esse pensamento estava sempre ali, em algum canto obscuro do cérebro. Não era isso, entretanto, que lhe dava forças para continuar. Continuava porque não havia opção, como quando você tem um trabalho que precisa terminar para seguir em frente, ou um dinheiro para ganhar para poder comprar um carro.

Um carro funcionando seria bom agora. De início era ruim usar carros porque as estradas estavam impossíveis de trafegar, depois o exército passou com um grande caminhão jogando os carros para os lados com uma espécie de limpa-trilhos adaptado. A idéia era fazer a ajuda correr mais rápido, mas os infectados levados aos abrigos só ajudaram aos mortos-vivos, conforme os doentes morriam e voltavam como zumbis infectando à todos. Mais algum tempo se passou e os monstros circulavam em massa pelas ruas, com quem se aventurasse a dirigir sendo perseguido por uma longa fila que lhe alcançaria durante o sono e que nunca parava de crescer ou de mover-se em direção ao som do motor. Agora era diferente, pois com os monstros dispersos demais um carro era muito bom. Poderia virar à direita com o carro em algum lugar e andar pra esquerda por uma hora só pra garantir. Isso se ainda existissem carros funcionando. Bombas, batidas, combustível roubado e incêndios terminaram com o som tão familiar dos automóveis.

Precisava encontrar mais gente para poder sobreviver mais tempo. Mais olhos para vigiar, mais habilidades, mais mãos capazes seriam úteis para montar uma pequena fortaleza. Não seria uma resistência humana ou coisa assim. Fazer frente aos zumbis seria enfrentar uma força da natureza, como lutar contra um furação ou um terremoto. Eles fariam como as vítimas desses fenômenos, juntando dos destroços o suficiente para seguir, esperando as coisas melhorarem o suficiente para reconstruir.

Seria legal se fosse um grupo de ateus. Com tudo o que está acontecendo não se pode continuar acreditando em Deus.

Certo?

Pedro já havia rezado por uma morte tranquila e rápida, por um novo dilúvio e até para que tudo se acabasse. Esse último pedido ele não esperava ver atendido, pois Deus deveria ter um ótimo motivo para mandar esse pesadelo à Terra. Nada disso viu atendido. Daí passou a rezar por consolo, por um salvador que o libertasse, por uma explicação, algo que trouxesse um sentido a toda uma existência vazia e lhe desse um vislumbre da Luz. Agora só queria indulto e abençoava a escuridão, que o escondia dos mortos famintos que estavam logo depois da porta da frente. Assistiu a crença em um Deus piedoso morrer, mas não conseguia deixar de acreditar que era punição divina. A Bíblia estava repleta de histórias de terror como aquela.

Augusto não gostava das coisas como estavam, mas sabia apreciar a ironia. A vida inteira se preparou para uma situação como essa – ao menos empiricamente – e agora ficara claro que ele e outros nerds sobrevivem graças à regras bem estabelecidas em suas mentes: passar despercebidos, não fazer barulho, não buscar entes queridos, estar razoavelmente em forma, não entrar em contato próximo com infectados, não tentar curar os infectados, mirar na cabeça. Mesmo gente fisicamente mais preparada ou munida de armas caíra porque ignorava ao menos um desses pormenores, mas a falta de grana o impedira de construir uma casa à prova de zumbis, juntar provisões ou qualquer coisa assim. Pensou que seus amigos poderiam compor seu grupo de sobreviventes, mas não se interessaram em discutir hipóteses de Fim de Mundo.

Logo viu uma igreja. Ironia de novo. Era muito bem construída, quase toda de pedra, grossas portas de madeira e muito alta. Lembrou-se de que as igrejas eram assim desde a Idade Média porque deveriam ser vistas de longe, mas que hoje era só uma herança cultural, já que os prédios de apartamentos eram todos muito maiores que elas. Parecia totalmente lacrada e a porta estava em boas condições e isso lhe disse que não fora invadida pelos mortos. Precisava entrar para passar a noite e ver o que encontraria em seu interior.

Chovia. Augusto estava com seus mais confortáveis jeans, camisa branca básica e uma grande capa de chuva. A mochila ia às costas por baixo da proteção impermeável. Parou em um ponto de ônibus e tirou de lá sua “Tereza”, uma corda feita com lençóis utilizada em fuga de presídios. Nela estava preso um gancho que lançou em uma janela no que parecia ser o primeiro andar. Era difícil de subir, mas conseguiria. Estava com sorte e não vira um zumbi o dia inteiro. Mais importante que isso, eles não o viram. Mas precisava dormir depois de andar por muitas horas com pouco mais que nada para comer. Estava já a meio-caminho quando imaginou o que faria se encontrasse um padre escondido por lá. Sorria enquanto fazia isso.

Apesar das paredes de pedra isolarem acusticamente partes da igreja e da chuva amortecer os ainda mais os sons, Pedro teve a nítida impressão de ter ouvido algo no quarto ao lado. Um som metálico, como se um candelabro acertasse o piso. Temendo que seu refúgio incendiasse, foi até lá com ansiedade. Os zumbis não podiam escalar paredes, certo? O que ele viu era totalmente inesperado, tanto que ele não sabia dizer ao menos se era bom ou ruim. No vestíbulo escuro, em frente à janela e com a luz da rua por trás dele, viu claramente a forma de uma pessoa terrivelmente familiar: Jesus, de toga.

Ao vê-lo, Pedro se prostrou, acreditando que sua hora chegara. Tinha muito medo e gemia, mas era melhor que tudo terminasse. Não aguentava mais.

- Não tenha medo. Estou vivo.

Lembrou-se então do Apocalipse de São João, Capítulo 1, Versículos 17 e 18. Era a mesma cena que se desenrolava em sua frente. Sua cabeça girava e logo perdeu os sentidos, acreditando que morria.

O invasor não estava preparado para o desmaio do sacerdote. Imaginou que o medo fora demais para ele e agora tinha de tomar conta dele. Era um homem mais velho, mas não um idoso. Pôs a mão em frente à boca do padre para ver se ainda respirava e descobriu que sim. Mesmo com a capa de chuva, andar debaixo de tanta água encharcara suas calças e ele tinha frio. Tudo bem, ele tinha uma muda de roupas. De jeito nenhum poderia adoecer por descuido que fosse. Agora: o padre iria atacá-lo durante o sono? Havia mais alguém por ali? Tinha de investigar tudo isso antes de baixar a guarda. Como o padre usava roupas frouxas foi possível amarrar o homem utilizando o excesso de tecido. Trocou de roupa, empunhou seu facão e saiu explorando a igreja cuidadosamente, sem usar qualquer tipo de luz que lhe denunciasse a presença naquele lugar estranho. Não encontrou mais ninguém, mas conseguiu pão, salame e vinho o suficiente para ficar satisfeito. O vinho de missa era mais forte do que imaginava a princípio e ficou ébrio cedo demais, mas estava seguro. Guardou parte do alimento em sua mochila, deixando a porção maior para o dono do lugar. Descobriu um pequeno catre em um quarto contíguo àquele em que mantinha o padre preso e dormiu.

O padre se sentia estranho. Estava incrivelmente relaxado. Percebeu que não estava na cama e logo depois que estava deitado no chão, olhando para o teto. Era manhã, mas o quarto estava escuro graças à janela fechada. De algum modo sabia que era manhã, seu corpo lhe dizia isso. Não era pelos passarinhos, pois toda a vida animal desaparecera com a vinda dos zumbis. Tentou se levantar e não podia. Por quê? Seus braços não se moviam, paralisados paralelamente ao corpo. Descobriu que podia dobrar os joelhos e erguer as pernas, mas que estavam unidas também. Não eram cordas, parecia que suas roupas estavam coladas.

Com um sobressalto lembrou-se da visita do Filho do Homem na noite anterior. Seria obra dele? “Senhor” chamou, mas sem falar muito alto. Era como quando rezava em voz alta. Ouviu passos do lado de fora e seu coração acelerou, não por pensar que fossem os monstros, mas por pensar que seria julgado ali mesmo. Entrou um jovem homem branco, de longos cabelos e barba. Usava jeans, camiseta preta e tênis. Por um momento pensou que deveria esperar ver Jesus vestido como as pessoas de hoje, até que o homem começou a falar.

- Calma. Amarrei você porque não sabia se podia confiar. Já vou te soltar.
- Quem é você?
- Augusto.

O cabeludo o virou de bruços e o desamarrou. Só aí percebeu que suas roupas é que restringiam seus movimentos. Usava as roupas de missa porque foram as que lhe sobraram dentro do recinto.

- O que você quer aqui?
- Nada não. Só passei aqui para dormir. Pensei que não havia ninguém. É uma boa idéia continuar quieto, padre. Os mortos parecem te deixar em paz se não souber que está aqui.
- Como você entrou?
- Pela janela.
- Mas é muito alto!
- Escalei, mano, nada de mais.
- Minha voz está estranha...
- Normal, passou muito tempo sem falar.
- Não me lembro de te ver nas missas.
- Não sou um fiel.

Percebendo que o visitante deixava de falar alguma coisa, deixou estar. Por enquanto. Sentia o cheiro de vinho no hálito do jovem e não sabia como se comportar com ele. Em verdade, Pedro pensou que não veria mais outro ser humano vivo. Se havia uma coisa em que padres eram bons era em incentivar as pessoas a falarem. Logo saberia tudo o que precisaria saber. Se o homem o soltara, era amistoso. Sabia, no entanto, que alguém que sobrevivesse sozinho lá fora tinha de ser duro, e que padre sabia brigar?

- Não sabe como estou feliz por receber a visita de um outro filho de Deus! Devo confessar que pensei que você fosse “o” filho de Deus ontem à noite.

Augusto explodiu numa gargalhada que assustou o padre pelo imprevisto da ação. Fazia tempo que não ouvira uma piada tão boa.

- Jesus não existe!
- Quê?
- Jesus não existe! Não há comprovação de que algum dia existiu essa pessoa. Se existiu, acredito que não era nenhum super-humano.

O padre ficou profundamente triste. Depois de todo esse tempo tinha de aparecer um homem para lhe fazer duvidar ainda mais de sua fé.

- Como explica o que está acontecendo lá fora sem aventar o sobrenatural?
- Não explico. Não tenho dados suficientes e não é útil fazer esse tipo de conjecturas. Suponho que seja um vírus ou coisa assim. Eles parecem ser vetores de uma doença, como mosquitos e malária. No mais, parecem ser o mesmo animal que nós, funcionando com menos perfeição.
- Seres humanos são perfeitos, mas não são animais.
- Seres humanos são animais desorganizados, ingratos e terrivelmente chatos que se supervalorizam.
- Mas esse é só o nosso lado ruim. Nossa alma nos faz belo.
- Prove.
- O quê?
- Prove que alma existe e que nos faz belo. Onde está a beleza do ser humano, com ou sem alma? Não me fale do passado, mas de algo palpável aqui e agora. Me dê um exemplo prático de que não somos animais que mal sabem o que fazer com a inteligência.
- A inteligência que nos distingue dos animais é que prova que temos uma alma.
- Errado. Outros animais são inteligentes, questionam e aprendem como nós. Só não podem construir prédios ou escrever porque não têm as mesmas ferramentas, mas se comunicam conosco e entre si, o que prova inteligência. Além disso, onde a inteligência nos levou? Acha que isso foi lançado por Deus? Provavelmente foi criado por algum vírus criado em laboratório. Nós dois somos inteligentes, mas nem podemos convencer um ao outro de nossas convicções.
- ...mas conversamos...
- ...uma conversa completamente sem propósito!

Passaram algum tempo calados. Agora desamarrado, o padre sentia as costas enrijecidas por ter dormido no chão.

- Obrigado por me desamarrar. O senhor é bem-vindo à casa de Deus.
- Deus também não existe.

Mais um silêncio constrangedor, ao menos para o padre. Augusto parecia pronto para discutir. Pedro foi em frente.

- Sabe do que eu tenho mais medo? De que isso seja só o início.
- Como assim?
- Segundo o Apocalipse de São João, Capítulo 9...
- Você ainda se baseia no que Bíblia diz?
- ...as pessoas procurarão a morte, mas a morte fugirá delas. Não vê? Ninguém está permanecendo morto. Mas esse é só o primeiro “ai”. Ainda haverá mais dois!
- Acerta na cabeça e vê se não fica morto!
- Não, homem. Os mortos-vivos são prova de que estamos vivendo os últimos dias. Não vejo os gafanhotos que saíram do abismo, mas certamente vejo seu trabalho!
- Que gafanhotos?
- Aqui!

Dizendo isso abriu a Bíblia e quis começar a ler, mas Augusto lhe cortou. Não iria permitir que a palhaçada continuasse. Além disso, um não podia convencer o outro de suas crenças e só estavam juntos por força das circunstâncias. Estava curioso para saber que outros dois “ais” eram esses, mas sua formação de psicólogo lhe permitia afirmar que o padre estava sofrendo uma crise de pânico e ele não tinha um antidepressivo à mão. Fazendo um ar condescendente, pediu ao padre que inspirasse fundo, prendesse o ar por dois segundos e então liberasse devagar a expiração algumas vezes. Para afastar Pedro do objeto causador do pânico, disse que tinham de pensar em comer algo. Pedro fez o exercício e se sentiu bem melhor, ainda que percebesse que era tratado como criança. Fez isso diversas vezes com os fiéis e agora aceitava a punição mansamente.

Durante o café da manhã Augusto explicou o que tinha em mente. A igreja parecia ser um lugar seguro, mas não tinha gente o suficiente para se manter por longos períodos. Precisariam sair para buscar mantimentos, voltando à noite para dormir, protegidos pelas sombras. Encontrar outras pessoas seria primordial para fazer uma rede de buscas e ter pessoas como médicos, eletricistas e armeiros. Em algum tempo, poderiam livrar uma área de mortos-vivos caçando os miseráveis, tornando tudo mais seguro.

Pedro arregalou os olhos quando percebeu que Augusto falava de deixar o lugar. Entendia que as provisões iriam acabar duas vezes mais rápido com a chegada do jovem, mas não tinha coragem de sair. Vira o que acontecia com quem caía nas mãos dos mortos. Viu Andrei voltar, completamente despido de sua radiante felicidade. Augusto percebeu que o padre estava lívido e pôs as mãos sobre as mãos do padre, num gesto tranqüilizador. Pedro as puxou como se estivesse com medo de ser preso novamente. Augusto levantou as mãos em sinal de paz.

- Entendo que esteja com medo, mas as coisas não estão ruins como pensa. Dá para enfrentá-los se você toma certas precauções. Posso treinar um pessoal e aí o senhor estará mais seguro que nunca. Vamos ter proteção e comida, mas agora somos só nós dois.
- Nós? Tenho mesmo de ir? Não posso ficar aqui lhe esperando?
- Você não está mais sozinho.

Dizendo isso o forasteiro estendeu a mão ao padre. Pedro não deixava de ter admiração pelos ateus. Só Deus e uma possível recompensa depois da morte o levavam adiante. Como alguém podia seguir quando acreditava que a vida, tão ruim nestes dias, terminaria com a morte, onde tudo se apagaria? Como não se matar sem um sentido para a vida? Porque continuar vivendo uma vida desgraçada como essa? Como podiam ser tão fortes assim, seguindo em frente sem Deus para dar valor e sentido à existência? Apertou a mão que lhe era estendida, mas resolveu enfiar o pé na jaca de uma vez.

- Porque continuar, se somos mortais, insignificantes num vasto Universo e se o fim é a morte? Sem acreditar em Deus, quero dizer. Pelo quê um ateu continua?
- A vida tem o sentido que você der à ela. Somos limitados e devemos dar valor limitado às coisas. O vinho que eu tomei foi bom e eu vou sempre me lembrar dele assim, mas se eu pensar que o vinho acaba e que por isso não tem sentido, o vinho tem que deixar de ser feito? Ou não tomamos o vinho para que ele dure pra sempre? Ou vou julgar o valor do vinho pela quantidade?
- Então você segue vivendo porque dá importância em como será lembrado?
- Nem eu nem o vinho nos importaremos depois que acabarmos, mas se fomos bons daremos exemplo para a humanidade.

Continuaram conversando, gostando da discussão e da companhia de alguém que não os estava tentando matar. Riram juntos e terminaram entendendo que não demoveriam os ideais uns dos outros. Por hora bastava argumentar, algo que os distinguia das criaturas podres lá fora. Augusto tinha fé na tenacidade do ser humano e Pedro confiava no plano de Deus. Tudo daria certo no final. O cabeludo acreditava que com o tempo teriam uma pequena vila funcional, mas no íntimo tinha esperança que grandes males da humanidade – como déspotas e religião – fossem coisa do passado e que um futuro brilhante surgisse depois desse evento de extinção em massa. O sacerdote vislumbrava os fiéis novamente enchendo a igreja numa era mais simples, praticamente medieval. As pessoas seriam gratas e mais unidas, não haveria pobres ou ricos e viveriam em paz. Claro que em algum momento o jovem teria de ser morto. Ele era muito convincente e as pessoas não poderiam virar as costas para Deus. Pedro não permitiria isso. A morte do ateu seria perdoada se o padre levasse sua vida ao termo catequizando pessoas, aumentando o rebanho de Deus. Interessante como o Senhor enviara o homem necessário para lhe tirar do torpor e levá-lo ao próximo passo. Augusto, em latim, significa sagrado.

Esse pensamento lhe enchia o peito de felicidade e fazia sua fé em Cristo aumentar.

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